top of page
Buscar
  • Foto do escritorTiago Bertalot

A Travessia e a Tempestade

"Navegar é uma atividade que não convém aos impostores. Em muitas profissões, pode-se iludir e blefar impunemente. Em um barco, sabemos ou não. Ai dos trapaceiros. O oceano é impiedoso."

Eric Tabarly (Tradução livre)


Nos últimos dias de Setembro, decidimos deixar a baia de Spinut, próximo a Split descendo até Dubrovinik e finalmente atravessar para Itália. Conosco teríamos a companhia de um outro barco com amigos brasileiros fazendo um trajeto semelhante. Essa viagem demoraria por volta de 3 ou 4 dias velejando 5h por dia e parando a noite para descansar. Já no começo, na baía de Necujam, paramos muito próximo a uma escuna e a noite quase batemos, tive que ligar o motor as 3h da manhã para empurrar o barco para frente e tirar um pouco de corrente da água, evitando uma colisão. Essa seria a primeira de uma sequencia de noites sem dormir. Por duas semanas apanhamos diariamente do tempo ruim com muito vento, chuva e vários outros imprevistos que foram retardando a nossa viagem. Sim, não é só de sol e caipirinha que se faz cruzeiro a vela.

Ventos catabaticos em Zuliana

Após um pouco mais de uma semana chegamos em Dubrovinik, no sul da Croácia, encharcados, exaustos e um pouco frustrados. A última navegada de 8 horas foi precedida de mais uma noite mal dormida e ao longo do dia fomos castigados por fortes ventos catabáticos (ventos que descem os vales dos Balcãs e atingem o mar furiosamente) principalmente durante a passagem pela baia de Zuliana. Ancoramos já no final a tarde no rio Rijeka-Dubrovaka ao lado de outros amigos brasileiros que vinham em sentido contrário ao nosso, para invernar na Croácia. A noite foi de festa com bate-papo, torta, vinho - um ótimo jantar apesar de estar chovendo de novo.


Bura, o terrível


Acordamos e nossos amigos já não estavam ali, partiram bem cedo para aproveitar o dia bonito que estava previsto vir pela frente, mais tarde soubemos que eles enfrentaram a balcânica Zuliana. Durante aquela semana estava previsto o vento mais temido da Croácia, o Bura (que em croata significa tempestade). O recorde de velocidade registrada desse vento ocorreu em 2012 com incríveis 248km/h (134kts), meu pilot-book dizia que na região que estávamos havia pouca proteção para o Bura e que pode-se esperar "velocidades de furacão" nesse rio. Lugar errado para estar num veleiro de 40 pés com a família. Pela décima vez, demos mais uma olhada na meteorologia e resolvemos que era hora de finalmente partir para a Itália. Já tínhamos ido e vindo nessa decisão muitas vezes ao longo daquela manhã.


Sofrendo com o cansaço das noites em claro e ansiosos em chegar logo na Itália e parar o barco depois de um fim de temporada com tempestades, imprevistos e quebras, somados com a complacência de analisar a meteorologia vezes seguidas (se acostumando com o que se víamos) Devagarzinho minávamos a nossa capacidade de ver as coisas com clareza, desconsiderando o que era correto fazer: esperar. Achar um canto e se esconder do Bura por 1 dia, 1 semana ou 1 mês, afinal, por quê a pressa se não temos horário? - Pois bem, se poderíamos errar, erramos.


Atuns fresquinhos


E assim, na manhã de 10 de Outubro, partimos sem vento e com ondas espaçadas e curtas que faziam o barco balançar continuamente, tudo isso já era esperado. A travessia para a Itália, saindo de Dubrovinik até Brindisi é de 130 milhas que estimávamos fazer em 24 horas. Usaríamos o motor nas primeiras 6 horas e vela no restante. Os tanques de água e diesel estavam cheios e preparamos uma refeição que tratamos de comer no início da tarde, 3 horas após a nossa partida. Logo depois do almoço tivemos a surpresa de avistar um cardume de atuns pulando fora da água, eram muitos e rimos de nós mesmos pois pensamos em colocar a isca na água só que o que faríamos se pegássemos aqueles atuns? - não sabemos nem como traze-los para o barco, imagine matar, limpar e guardar! Deixamos a vara ali quietinha no convés para não correr nenhum risco de pescar um peixe!


No o fim da tarde estávamos cercados por muitas tempestades do norte ao sul, a nossa frente no rumo sudoeste ainda era possível ver o céu. No rádio VHF, o broadcasting meteorológico da Croácia

Tempestades por todos os lados

informava: tempestades esparsas com chuva forte, vento de 12kts e rajadas de 20kts. Foi mais um dos avisos que desconsideramos e talvez o último a tempo de voltar para a trás. As tempestades começaram a rondar nosso barco. O mar que já não estava calmo, começou a crescer rapidamente e o vento, ainda sem dar as caras, já mostrava sua fúria nas rajadas. As essas alturas estávamos com o motor e uma pequena parte da genoa aberta, seguindo o rumo exato à Brindisi, Zeus estava se preparando lentamente para o que viria a seguir.


Chamada noturna


Com o cair da noite, o vento finalmente veio com 16kts e rajadas de 40kts. As tempestades agora rondavam bem mais próximas ao barco e aquelas ondas que eram previstas em 1.2m, estavam

mais altas que o nosso bimini, talvez acima de 2m e em direções indistintas. Um luar apareceu lindo, mas tímido e logo se foi, coberto pelas grossas camadas de nuvens. O escuro envolveu o barco que agora estremecia com a água passando pela lateral do casco ao descer as paredes das ondas. As crianças estavam em uma das cabines tentando descansar, o que era difícil com o balanço sem direção definida e o barulho das água contra o casco eu também tentei dormir mas não consegui. Rendi a Mariana no turno inicial da noite, então ela desceu para se aquecer e dormir um pouco. Ao pegar o mosquetão da linha da vida, vi pelo seu olhar que estava inquieta, somado a tudo estávamos ainda atravessando o ship-lane, uma "avenida" de grandes navios de carga e cruzeiro.


Me sentei encostado num canto do cockpit evitando os respingos de água que insistiam em cruzar o barco voando de um bordo ao outro. Por volta da meia noite recebemos o broadcasting de Bari que nos dava informações de uma borrasca forte, com ventos de 50kts e ondas de 5 a 6.5m logo a nossa frente. No VHF escutávamos navios sendo informados que os portos de Bari e Monopoli estavam fechados devido ao mal tempo. Para nossa surpresa, somos chamados pelo rádio:


- Trouble Maker, esse é o cargueiro xxxx

- Prossiga cargueiro, aqui é o Trouble Maker

- Vou manobrar a bombordo, mantenha seu rumo e sua velocidade, te informo ao fim da manobra

- Entendido, boa noite


Com o mar já grande, o Trouble estava indo de 2kts subindo à crista da onda até 11kts descendo ao cavado, fiquei em dúvida e quase perguntei: cargueiro, qual velocidade é essa? Ele manobrou e se foi, passamos por muitos outros navios grandes, mas só esse nos chamou, santo AIS!


Minha cabeça contra mim


Aos primeiros clarões do dia, pude ver a minha real situação: o mar estava grosso com ondas altas que vinham de norte nos pegando de alheta ou de lado e fazendo todo o barco balançar violentamente, havia muito spray de água salgada que formavam um nevoeiro molhado ao nosso redor. O vento agora estava com 35kts

constantes e o Trouble Maker seguia seu curso com dificuldade, mas sem esmaecer. No interior do barco as coisas começavam a ficar caóticas, tudo batia e até mesmo o banco da sala pulou fora do lugar arrancando uma placa do piso junto com ele. Mesmo a pior previsão não mostrava condições tão ruins, estávamos no meio da tempestade e nossas escolhas eram limitadas.


Me senti frustrado, tive medo e vontade de não estar ali. Fiquei pequeno no meu barquinho de plástico envolto pela natureza furiosa e implacável, fechei os olhos e tentei me acalmar pensando em algo diferente, mas foi impossível, logo veio o barulho do barco no mar me lembrar que a ninguém pode fugir da sua própria realidade. A minha mente começava a trabalhar contra mim, me mandando ficar quieto e deixar as coisas acontecerem por elas mesmas. Não! Tudo isso é parte do aprendizado - ali embaixo tinham 3 pessoas que dependiam de mim, acreditavam em mim. Estávamos a 3 horas do nosso destino e o tempo piorava a cada boletim meteorológico.


...2 crianças?


As ondas começaram realmente a quebrar em rolos, pensei que isso não existia no mar aberto, porém existe. Enquanto eu tentava evitar mergulhar naqueles rolos e ao mesmo tempo manter um rumo que fosse adequado, percebi que talvez não fosse possível entrar em Brindisi com um barco pequeno naquelas condições. E se não desse? Se não nos deixassem entrar? Qual seria a alternativa? - essas e muitas outras perguntas pulavam na minha mente cansada e frustrada. Teria eu que rumar para a Albânia com ondas de mais de 5m? Quanto combustível me restava? O que estou fazendo aqui?


A 1 hora para dar na entrada do porto chamamos a estação do porto de Brindisi para avisar nossa posição e nossa intenção. Percebi uma certa inquietação na voz do operador do rádio:


- Brindisi Radio, Trouble Maker, over

- Prossiga Trouble Maker, aqui é o porto de Brindisi

- Somos um barco a vela de 12m, tripulação de dois adultos e 2 crianças, pretendemos entrar no porto em 1 hora, sem condições de mudar nosso rumo devido as condições do mar.

- .... repita, 12m? Tripulação de 2 adultos e... 2 crianças?

- Afirmativo, over


A hora decisiva chegou! Autorizados pelo operador do porto, seguimos o nosso rumo. A essas alturas, o mar enfurecido já tinha derrubado dois rolos de onda sobre o nosso deck, o vento finalmente havia diminuído para 25kts e com dificuldade, devido ao nevoeiro formado pelo spray das ondas, consegui avistar um quebra-mar enorme que era coberto pelos rolos gigantes de água e ao seu final a entrada do porto não menos assustadora.


Nada a temer


Nessas horas a mente que vinha trabalhando contra você desperta em coragem, liberando a adrenalina que passa a tomar conta de tudo, seria o instinto de sobrevivência? A entrada estava ali, o balizamento verde e vermelho a nossa frente aparecia e sumia no balanço do nosso barco, potência a frente, leme firme nas mãos, nada pode nos deter! - entramos, conseguimos!!! Senti uma alívio que nunca experimentei antes. O meu corpo entorpeceu-se de calma, o barulho já não me preocupava mais. Eu, meu barco, minha pequena tripulação não tínhamos mais nada a temer, estávamos seguros finalmente.


Dias depois, conversando com alguns experientes velejadores daqui, entendi o quanto arriscado foi sair naquela condição, onde os ventos que vem dos Balcãs sopram por dias levantando o mar e criando

Ventos dos Balcãns

borrascas imprevisíveis. Aqui no barco, em volta da mesa e aportados seguramente na marina, fizemos um debriefing de tudo que passamos, das coisas que precisamos melhorar e das coisas que fizemos certo.

No final, tive muito orgulho das crianças que se mantiveram a calmas e obedeceram todas as nossas regras de segurança, sempre ajudando com o que podiam, senti orgulho da Mari que mais uma vez foi companheira e corajosa mesmo quando as coisas não saem tão bem, já de mim....


Se você vem para o mar como a gente é preciso estar preparado. O nosso barco enfrentou muitas horas de tempo ruim e permaneceu quase intacto, tivemos um vazamento de água e algumas coisa que saíram do lugar, nada que afetasse a nossa segurança. Nós usamos tudo o que sabíamos para contornar a situação, conhecimento, preparação e saber reagir nos momentos adversos são fundamentais.




Se você gostaria de discutir genuinamente a vida a bordo e experiências como essa acima, não deixe de entrar em contato conosco!


Tiago




111 visualizações3 comentários

Posts recentes

Ver tudo

3 Comments


fariaaapedro
Jan 21, 2022

Tiago você é um aventureiro nato, disciplinado, detalhista e estudioso. Tenho certeza que essa nova etapa de vida irá de vento em popa.

Apenas olhe as estrela, sinta o vento e abra as velas....sempre haverá um porto a chegar.

Seu projeto já é um sucesso!!

Abraço!

Like

Giorgio Bertalot
Giorgio Bertalot
Nov 28, 2021

Há momentos, instantes, que fazem uma grande diferença em nossas vidas. Creio que esse tenha sido um desses momentos para vocês. Inesquecíveis.

Like

Giorgio Bertalot
Giorgio Bertalot
Nov 28, 2021

Que aventura!!!

Like

Nossa Revista de Vela

WhatsApp Image 2022-01-15 at 16.04_edite
bottom of page